Vendendo o almoço para pagar a janta

Por Victor Candido de Oliveira

Texto publicado originalmente na revista Markets St, onde o Terraço mantém um espaço editorial. Edição de Novembro 2014

Sentados em uma bonita varanda, João e seu avô conversavam sobre histórias e mais histórias de uma vida bem vivida por seu avô e sobre o sonho de uma criança em crescer, estudar e encerrar o ciclo da vida com ricas experiências, na imagem e semelhança de seu avô.

Analisemos um caso em que João e seu avô são membros de uma classe social baixa, a qual dependa largamente de recursos do Estado para sobreviver, no caso do avô, e para se desenvolver, no caso do pequeno João. Serviços básicos são deveres deste Estado. Claro que estamos falando do Brasil, que após a constituição de 1988 criou uma enorme rede de proteção social que necessita de robustos fluxos financeiros para ser financiada, fora a sua limitada eficiência.

Do ponto de vista do longo prazo, esse Estado deveria investir no pequeno João, que tem uma vida inteira pela frente. Para isso, ele deve ter um acompanhamento médico adequado e meios que possibilite o desenvolvimento máximo de sua capacidade intelectual, como bons centros de ensino desde a educação básica até a universidade. Após todos esses anos João seria um jovem eficiente e produtivo, contribuindo para o país e, inclusive, bancando a previdência de milhões de outros avós país afora.

Mas não é isso que acontece. Hoje no Brasil o governo central gasta mais com idosos do que com crianças, um enorme contrassenso correto? Mas é racionalmente explicado. Boa parte da alocação é definida por projetos de lei votados no congresso nacional, e os idosos são um público preferencial por parte dos políticos, são numerosos e com demandas bastante homogêneas, um prato cheio de votos. O governo aloca metade do gasto primário com pagamentos para idosos. Uma rápida olhada nas despesas pode revelar um quadro pouco conhecido.

A despesa pró-idoso é de 9,16% do PIB, 50,1% da despesa primária e cresceu 96% em termos reais entre 2002-2012, o aumento se justifica que boa parte dos benefícios são atrelados ao salário mínimo que sofreu grandes elevações na última década. Todos os itens da tabela acima, exceto o BPC-LOAS, são despesas previdenciárias, outro grave problema brasileiro, segundo Marcelo Abi-Rama:

“O Brasil gasta com previdência como proporção de seu produto o equivalente a países como Bélgica, França, Alemanha, Finlândia e Suécia, as quais apresentam razão de dependência demográfica [relação entre o número de beneficiários e o número de trabalhadores ativos contribuintes para a Previdência] próxima a 27% praticamente o triplo da brasileira. De modo análogo, (…) países com perfis demográficos próximos ao do Brasil despendem com previdência como proporção do PIB algo em terno de 4%, praticamente um terço do gasto brasileiro”

É evidente o grande peso previdenciário sobre a despesa total do governo, é por isso que reformas previdenciárias são sempre temas delicados e sempre em moda, o sistema é uma bomba relógio.

Mas qual o problema em dar ênfase nos idosos?

Trabalharam a vida toda, merecem rendimentos e atendimentos decentes, para terem um final de vida digno. De fato merecem, mas o governo está esquecendo do pequeno João. Segundo um estudo de Ricardo Paes e Barro, afirmam que a pobreza entre crianças é 10 vezes maior que entre idosos. O governo transfere sem contrapartida (sem contribuição do cidadão) 20 vezes mais para idosos do que para crianças.  Outro estarrecedor diagnóstico é de Francisco Ferreira que diz que 80% das crianças brasileiras estão crescendo em lares que não chegam nem a ser a classe média. Se o governo quer dar condições melhores para o futuro do Brasil e corrigir a desigualdade, ele está errando feio mirando nos Idosos.

Programas como o Bolsa Família que são extremamente exitosos em combater a pobreza, são vinculados a existência de crianças no lar e que a mesmas frequentem a escola. Mas a situação das escolas é outro problema sério enfrentado pela criança brasileira. Podemos ter avançado tremendamente na universalização do ensino básico, mas não em sua qualidade.

A educação superior, mesmo indo mal, vai bem em relação a básica. Enquanto a educação universitária brasileira é medíocre, a básica é lastimável. Nossos resultados no teste PISA comprovam isso: em matemática somos piores que países como Albânia. No entanto, é nesse setor que existe o maior gap nacional na produção intelectual. Sim, as crianças brasileiras são certamente o nosso maior gargalo para a formação de capital humano, tão necessário para o desenvolvimento econômico.

A educação básica também ficou relegada ao segundo plano, sendo o ensino superior aquele que mais recebe recursos per capita. E infelizmente tal modalidade de ensino não é amplamente aproveitada pelas camadas mais pobres (não é novidade que o ensino superior público é extremamente elitizado).

Em um trabalho, inclusive vencedor da medalha Frisch, o brasileiro Flávio Cunha junto com o vencedor do prêmio Nobel de economia James Heckman, tiveram descobertas interessantes sobre o desenvolvimento de habilidades cognitivas e não cognitivas em crianças de 0 a 15 anos. O que o trabalho mostra é que tais habilidades são mais baratas e fáceis de serem desenvolvidas quanto mais nova for a criança. Ou seja, garantir uma iniciação escolar de qualidade e um ambiente estável para a criança se desenvolver intelectualmente é um fator primordial. A conclusão do trabalho de Cunha e Heckman é que as políticas educacionais e sociais devem dar maior atenção às crianças, principalmente aquelas em estágios iniciais de desenvolvimento educacional.

tabela

Mas o Brasil parece que andou se esquecendo da educação infantil, visto que o investimento em porcentagem do PIB pouco aumentou (0,2%, entre 2000 e 2011). No mesmo período, a educação básica aumentou 1,2%, um desempenho medíocre. O governo federal deveria prestar mais atenção na educação básica. Crianças melhores preparadas serão universitários com desempenhos melhores. Em outras palavras é preciso investir melhor em todos os campos da educação, mas o foco principal deve ser a criança. Afinal, ela é o cidadão de amanhã.

Apresentamos aqui alguns dados relevantes que, se não comprovam, argumentam fortemente para o que foi dito no parágrafo acima de que reformas nos gastos públicos são necessárias. Resumindo, os gastos de governo que vemos no Brasil não condizem com o perfil dos brasileiros. Existem mais gastos com idosos do que pessoas idosas. O país está envelhecendo sim, mas não a mesma velocidade que os gastos com previdência estão crescendo. Entretanto, não temos visto esse dinheiro se reverter em uma velhice mais louvável. A previdência que ocupa mais de 50% dos gastos do governo não está se revertendo em benefícios para o cidadão. Onde estes gastos estão fluindo é uma incógnita.

Não negamos a importância da previdência e da garantia para o cidadão de uma melhor idade sustentável. Mas de que adianta asseverar uma velhice que pode nem existir para milhares de pessoas que não conseguirão transpor nem as barreiras básicas do acesso à saúde, escola e trabalho? Para um dia se tornar um homem admirável como seu avô, João precisa de oportunidade, e não de uma bengala.

Notas:

Dados retirados de: Mendes, M.J. (2014) Por que o Brasil cresce pouco? Desigualdade, democracia e baixo crescimento no país do futuro. Editora Campus Elsevier.

Victor Candido

Mestre em economia pela Universidade de Brasília (UnB). Economista pela Universidade Federal de Viçosa (UFV). Foi economista-chefe de uma das maiores corretoras de valores do país, economista do Banco Interamericano de Desenvolvimento e atualmente é sócio e economista de uma gestora de fundos de investimento. Foi pesquisador do CPDOC (O Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil) da FGV-RJ. Ajudou a fundar o Terraço Econômico em 2014.

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