Universidade e sociedade: por que ninguém se importa?

Entre uma delação e uma tragédia, pipocam nos jornais notícias de crises no ensino superior brasileiro. As mais recentes, sobre a falência orçamentária da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) após a ausência de repasses e sobre o investimento abaixo do piso previsto na constituição estadual para a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), vêm se somar à tendência observada nos últimos anos, segundo a qual governos estaduais e governo federal competem numa corrida para drenar cada vez mais os investimentos em educação, pesquisa, ciência e tecnologia no Brasil. As notícias, no entanto, não atraem demasiada atenção nem da mídia, nem da sociedade civil brasileira, dando mais indícios no sentido do diagnóstico que fiz neste espaço há duas semanas: educação superior não é uma pauta prioritária no Brasil [1].

Gritos, catástrofes, clamores e apelos não são eficazes o bastante para mobilizar esforços em prol dessa área, mas por quê? Por que ninguém se importa?

Em entrevista ao Nexo no final do ano passado, o ex-ministro da Educação, Renato Janine Ribeiro, quando questionado se a educação é uma prioridade do Brasil atualmente, respondeu negativamente, imputando esse descrédito a traços sociais brasileiros que culminam na desvalorização da educação entre nós. Pautas como saúde serão sempre mais urgentes para nossa população, porque, nas palavras do ex-ministro: “a doença dói, a ignorância não” [2]. Ainda segundo Janine, parte da responsabilidade por essa apreciação negativa da educação é dos meios de comunicação, que insistem em retratar a escola como um ambiente chato e o aprendizado como algo tedioso.

Não quero aqui analisar os méritos (e deméritos) desse diagnóstico, mas proponho uma inversão nos termos da questão: o que a universidade (não) tem feito para que a população em geral se importe tão pouco com ela? Que haja uma cisão entre a universidade e a sociedade onde ela se situa, parece consenso – cristalizado na expressão torre de marfim, por exemplo, caracterizando acadêmicos como pessoas reclusas, trancafiadas em cômodos distantes, isolados e fora do alcance das pessoas comuns que se movem a rés-do-chão. No entanto, pouco se pergunta qual a parcela de contribuição da instituição para esse cenário e o que ela pode mudar em si mesma para alterá-lo.

Naturalmente, há um leque imenso de fatores que compõem esse quadro, desde o caráter tradicionalmente excludente e elitista das universidades no Brasil até a vaidade intelectual sus-tentada pelo fetichismo do diploma. Abordarei a questão a partir de dois pares conceituais que são poucas vezes articulados, embora sejam muito elucidadores do divórcio entre universidade e sociedade: autonomia-accountability e utilidade-relevância.

A Constituição Federal de 1988 afirma, no artigo 207, a autonomia das universidades em três dimensões: 1) didático-científica; 2) administrativa; 3) de gestão financeira e patrimonial. Pautando-se sobre a indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão, as universidades estariam protegidas de intervenções externas excessivas e poderiam dar-se a si mesmas (auto) as regras orientadoras de suas atividades (nómos). No entanto, parece haver uma confusão histórica entre nós, borrando os contornos do conceito de autonomia e distorcendo seu sentido para significar falta de accountability. Quando um órgão da administração pública ou uma organização da sociedade civil questiona alguma decisão de uma universidade, imediatamente a comunidade acadêmica reage invocando a referida autonomia, que estaria em risco e sob ameaça ao menor pedido de esclarecimento ou crítica. O termo inglês accountability, de difícil tradução (algo entre responsabilidade, responsividade e a necessidade de prestação de contas por parte de instituições), aponta para a relação de transparência comunicativa que deve haver entre uma instituição singular, o Estado e a sociedade. Quando provocada “de fora”, uma instituição tem a obrigação de expor os critérios que informaram suas decisões, planos e ações. Longe de representar uma ameaça à autonomia, esse instituto abre oportunidades para reafirmá-la: a cada vez que os termos, motivos e razões são abertas ao público geral, maior é a legitimidade que elas adquirem perante os interlocutores. Ao contrário, se a cada chamada se responde apenas com um pedido de SOS, nu-ma tentativa de deslegitimar o próprio questionamento, passa-se a impressão de que se está operando segundo critérios escusos e obscuros.

Um caso particular que ilustra esse problema é a discussão acerca da avaliação da qualidade do ensino e pesquisa nas universidades brasileiras. Uma pergunta instintiva que surge nesse contexto é: para que serve isso? Para que servem estes cursos, currículos, diplomas, trabalhos, artigos, estudos, projetos, essas pesquisas? Essa pergunta expressa a busca pela utilidade de algo; trata-se de entender a qual fim um determinado objeto serve de meio. Ela é rotineiramente rejeitada pela comunidade acadêmica com dois argumentos principais: 1) trata-se de uma concepção restrita da natureza do conhecimento, da qual a dimensão instrumental-utilitária é apenas uma, não a única e nem (talvez) a mais importante; 2) esse tipo de pergunta representa, mais uma vez, uma ameaça ou afronta à autonomia universitária, pois pede impactos externos para julgar uma ação que deveria estar baseada apenas em critérios da instituição. Embora o primeiro argumento constitua uma defesa louvável do conhecimento (também) enquanto fim em si mesmo – partilha-da por ditos progressistas e ditos conservadores –, o segundo argumento gera um problema de ordem prática, especialmente nas instituições públicas. Instituições como a UERJ e a Fapesp são financiadas com dinheiro público, advindo de diversas origens mas tendo sempre, no ponto de partida, setores da sociedade para além dos muros da comunidade acadêmica. Ora, como justificar esse investimento – ou, pior, reivindicar um aumento nos repasses – sem dar satisfação da contrapartida envolvida? De fato, a pergunta pela utilidade é problemática, mas revela um anseio legítimo: por que eu deveria me importar (financeiramente, inclusive) com vocês se vocês se recusam a informar de maneira clara e reafirmar o que eu ganho em troca, ainda que não imediatamente? Se a utilidade é um mau critério de avaliação do conhecimento, sua relevância parece não sê-lo. Articular a questão em termos de relevância significa deixar de lado a concepção instrumental, funcionalista e utilitária, mas ainda se importar com o impacto social e as consequências das atividades acadêmicas.

De alguma forma, a comunidade universitária em todos os seus componentes precisa estar aberta a responder a esses dois anseios: o de accountability e o de relevância. Só assim ela con-seguirá se munir da legitimidade social necessária para tornar significativa e eficaz sua autonomia. Caso contrário, permaneceremos soberanos de nossas torres de marfim em ruínas, a olhar com desprezo para a plebe que circula abaixo, ao mesmo tempo que não somos capazes de compreender por que ela não se escandaliza com nossa paúra e não corre diligentemente ao nosso resgate – financeiro, inclusive. Num próximo texto, desenvolverei com vagar os contornos do conceito de relevância intelectual, científica e acadêmica.

Rafael Barros de Oliveira – Colaborador do Terraço Econômico

Notas

[1] https://terracoeconomico.com.br/complexo-de-vira-lata-e-o-lugar-do-brasil-na-divisao-internacional-do-trabalho-intelectual

[2] https://www.nexojornal.com.br/video/video/O-lugar-da-Educa%C3%A7%C3%A3o-no-Brasil O trecho citado começa a partir de 7:30 deste vídeo, que é a primeira de três partes da entrevista.

Rafael Barros de Oliveira

Formado em Direito pela USP, interessou-se pela teoria do direito produzida na Escócia antes de cair na filosofia da linguagem. Tomou o caminho mais longo, cursando a graduação em Filosofia na mesma USP, onde percebeu a tempo que do mato wittgensteiniano não sairá mais pato-lebre algum. Social-democrata por exclusão, acredita que a hermenêutica é o caminho para a emancipação. Foi pesquisador na Direito GV, na École Normale Supérieure de Paris e na Goethe Universität Frankfurt. É mestrando em Filosofia pela USP e agora tenta produzir suas próprias cervejas.
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