Quanto mais, melhor?

Nos discursos políticos nacionais, muitas vezes vemos a quantidade ser evocada como motivo de orgulho: o número de universidades abertas por um grupo político[1], a quantidade de cursos técnicos que passaram a ser oferecidos[2], o número de estudantes matriculados no ensino superior[3] e mesmo a quantidade de títulos de doutorado concedidos por uma única instituição[4]. Esses dados, marcos e recordes são evocados, na maioria das vezes, em tom laudatório, como se representassem, por si só e automaticamente, avanços.

Esse fenômeno talvez represente, a um só tempo, tanto uma reação ao nosso complexo de vira-lata[5] quanto um reflexo do projeto – que ciclicamente retorna à cena política – do Brasil Grande[6]. Se não somos capazes de atingir sucesso nos indicadores de qualidade de vida[7] e de ensino[8], quem sabe não conseguimos, ao menos, ganhar pelo volume?

É certo que o Brasil é um país extremamente desigual[9] e que ainda apresenta déficits de oferta de serviços públicos e acesso a oportunidades, quando comparado a países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), por exemplo. No entanto, não podemos nos dar ao luxo de ignorar critérios qualitativos e nos satisfazermos com a inclusão e a expansão quantitativa – importantíssima e indispensável, sem dúvida, mas também insuficiente.

É urgentemente necessário atentarmos para e exigirmos critérios de qualidade nos investimentos em educação e pesquisa. Dois exemplos.

Muito se vangloria sobre a expansão das matrículas no ensino superior, mas pouco se fala – ao menos entre os políticos que reivindicam o sucesso desse crescimento – sobre a taxa de evasão dos alunos, a porcentagem de graduados e a qualidade da formação dos egressos[10]. É importantíssimo ampliar o acesso ao ensino superior, historicamente negado a amplas parcelas da população; mas é preciso mais, é preciso ser melhor.

Outro caso, mais traiçoeiro, é o de índices de qualidade que são, no fundo, métricas quantitativas. Tomemos o caso dos rankings universitários internacionais. Embora pretendam apresentar ao mundo quais são as melhores universidades, o que eles revelam é o quanto as instituições conseguem atingir, em quantidade, certos aspectos: para menos (quanto menor a relação docentes/alunos, melhor) ou para mais (quanto mais artigos e mais citações, melhor)[11].

O paradoxo quantidade-qualidade que este último caso traz um aspecto interessante: em certos casos, variações de quantidade produzem efeitos de qualidade. Na Ciência da lógica, Georg Wilhelm Friedrich Hegel se esforçou em derivar as categorias da existência e do pensamento a partir da pura indeterminação. Revelando os pares de opostos que compõem cada categoria, Hegel mostrou como quantidade e qualidade estariam radicalmente separadas: mudanças na quantidade não alteram o ser qualitativamente. Décadas depois, Karl Marx se opôs a essa separação radical. Para ele, a partir de certo ponto, mudanças drásticas de quantidade afetam, sim, a qualidade de uma coisa[12].

O que interessa aqui é reforçar que, no caso da educação superior, há certa conexão entre ambas as categorias. De que adianta ter expandido o ensino superior sem que isso seja acompanhado de um acréscimo de qualidade? Adianta e muito! Trata-se de uma oportunidade cujo acesso precisa ser ampliado, então a expansão quantitativa é necessária nessa seara. No entanto, não basta.

É esse o ponto que tentei defender aqui. Se, por um lado, é preciso ir além da quantidade e exigir qualidade, por outro lado é importante reconhecer o impacto positivo na qualidade que o aumento de quantidade pode acarretar. Se é preciso criticar o mau uso de grandes volumes de recursos em certos investimentos educacionais, como o Ciência sem Fronteiras,[13] é igualmente preciso reconhecer que se trata de uma área cuja magnitude de desafios exige um mínimo indispensável de investimento – não tão mínimo assim.

Trata-se de um movimento duplo, complexo: a crítica dos maus gastos aliada à defesa da reivindicação por uma parcela orçamentária vistosa. No momento atual, precisamos ter clareza disso.

Rafael Barros de Oliveira – Colaborador do Terraço Econômico [1] http://www.pt.org.br/governos-do-pt-criaram-18-universidades-publicas-tucanos-nenhuma/ [2] http://www.vermelho.org.br/noticia/246625-1 [3] http://portal.mec.gov.br/component/tags/tag/32044-censo-da-educacao-superior [4] http://www5.usp.br/6746/usp-e-universidade-que-mais-forma-doutores-no-mundo-aponta-ranking/ [5] https://terracoeconomico.com.br/complexo-de-vira-lata-e-o-lugar-do-brasil-na-divisao-internacional-do-trabalho-intelectual [6] http://blog.opovo.com.br/fabiocampos/ilusao-do-brasil-grande/ [7] https://pt.wikipedia.org/wiki/%C3%8Dndice_de_Qualidade_de_Vida [8] https://pt.wikipedia.org/wiki/Programa_Internacional_de_Avalia%C3%A7%C3%A3o_de_Alunos [9] https://oglobo.globo.com/economia/brasil-o-10-pais-mais-desigual-do-mundo-21094828 [10] http://g1.globo.com/educacao/blog/andrea-ramal/post/ensino-superior-entre-o-abandono-e-o-baixo-desempenho-poucos-se-destacam.html [11] https://terracoeconomico.com.br/quem-servem-os-rankings-universitarios [12] As conceitualizações de qualidade e quantidade de Hegel e Marx divergem, e o debate é longo, descabido para esse espaço. [13] https://terracoeconomico.com.br/fronteiras-sem-cienci

Rafael Barros de Oliveira

Formado em Direito pela USP, interessou-se pela teoria do direito produzida na Escócia antes de cair na filosofia da linguagem. Tomou o caminho mais longo, cursando a graduação em Filosofia na mesma USP, onde percebeu a tempo que do mato wittgensteiniano não sairá mais pato-lebre algum. Social-democrata por exclusão, acredita que a hermenêutica é o caminho para a emancipação. Foi pesquisador na Direito GV, na École Normale Supérieure de Paris e na Goethe Universität Frankfurt. É mestrando em Filosofia pela USP e agora tenta produzir suas próprias cervejas.
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