O mito do rentista que quer que a economia exploda

A economia, ciência social humana que é, deixa diversas interpretações possíveis da realidade para quem desejar acompanhar o debate. Economistas costumam visualizar a realidade de uma economia de acordo com suas convicções, baseando-se em metodologias que vão da análise dos dados e situações a suposições amplas – e até questionáveis – do que deveria ocorrer segundo suas crenças [1].

Quando o assunto são as contas públicas, especificamente a destinação do orçamento e a decisão de realizar incrementos ou diminuições sobre a dívida pública, surge uma figura apontada por alguns economistas como sendo a origem de todo o mal: o rentista. Quem seria esse personagem? Basicamente aquele indivíduo que tem como fonte principal de recursos os juros, estes que podem ser advindos de diversas fontes – imóveis e aplicações financeiras, principalmente, sem falar na própria dívida pública.

Especificamente quando se trata da questão das contas públicas, rentista seria aquele cujos rendimentos advém majoritariamente dos juros da dívida pública. Considerando as pessoas que investem no Tesouro Direto, temos que a população rentista é cada vez maior: a aplicação, criada em 2002 buscando trazer ao público um meio de financiar o governo diretamente, ampliar o prazo médio da dívida deste e ainda desindexá-la, tem sido cada vez mais um caminho para alocação de dinheiro dos indivíduos. O que demonstra isso foram os seguidos recordes de investimento neste tipo de título, em detrimento da poupança nos últimos meses – o que deve ser advindo de, dentre outros motivos, um maior conhecimento por parte do público sobre o funcionamento daquele investimento e de suas vantagens (como o rendimento maior e diário) em relação a este último.

Fonte: Tesouro Nacional [2]. Elaboração própria.

Após esta introdução sobre como surge o rentista no cenário das contas públicas, aqui vai a pergunta de um milhão de dólares: seria este o maior culpado da dívida pública brasileira ter esta magnitude e/ou da taxa de juros ser alta (em termos reais, sempre entre as maiores do mundo [3])? A resposta é direta: não caia nessa história. Os porquês também são diretos: porque a taxa de juros responde à inflação e porque quando o governo decide aumentar sua dívida pública em momentos seguidos o custo de se emprestar à ele naturalmente se eleva.

O primeiro motivo: além de fazer parte da definição do papel do Banco Central do Brasil [4], o encaminhamento da taxa de juros se dá acompanhando os rumos e as expectativas sobre a inflação. É o que rege a chamada Regra de Taylor que, quando negligenciada (como vimos ocorrer no primeiro mandato de Dilma Rousseff, em que observamos uma queda de juros mesmo diante da resistência inflacionária [5]), mostra seus custos em poucos trimestres. Pois bem, o que se tem em relação a definição da taxa de juros então é o ancorar de expectativas sobre a oscilação geral dos preços – e não alguma vontade sombria de arrebentar com o país apenas para ter ganhos reais.

Sobre o segundo motivo, a discussão é mais ampla, mas pode ter uma analogia mais próxima da realidade. Imagine que você tem um amigo que vive endividado, mas, por ele ser muito seu amigo, você está disposto a ajuda-lo emprestando dinheiro. Você empresta um pouco, vê que ele se enforcou novamente, vai lá e empresta mais. Porém, mesmo com algumas dicas que você tenha dado a ele sobre como lidar melhor com o orçamento, conversando com ele sobre o assunto descobre que logo estará viajando para a Europa mesmo que não tenha condições para o tal. Dinheiro não é algo fácil de ganhar, então, supondo que você aplique uma taxa de juros a estes empréstimos, sabendo que seu amigo está ligando cada vez menos para te pagar de volta, não seria razoável que esta taxa de juros – que embute justamente o risco de não receber – seja cada vez maior?

Então: com o governo a situação é análoga – não igual, basicamente porque as condições de financiamento do governo são diferentes, mas certamente parecida –, pois quanto mais ele aumenta sua dívida (considerando aí uma boa dose de isenção de impostos e subsídios de naturezas diversas), mais custoso é para aumenta-la [6], pois o risco de solvência, de pagamento desta dívida, fica cada vez maior.

O mito do rentista malvado não faz sentido, então, porque este investidor, independente de seu tamanho em relação ao mercado – seja ele um grande banco ou um investidor que aloca R$100 por mês ao Tesouro Direto –, não é por si só capaz de definir os rumos da taxa de juros. E, liberando o lado conspiratório da situação, é ilógico imaginar que, caso fosse possível que essa definição de taxa de juros obscura acontecesse de fato, a taxa de juros tenha caído no ritmo que temos observado.

Se fossem os rentistas responsáveis por tal definição, não faria mais sentido manter a taxa de juros alta – ou ainda realizar novos aumentos – mesmo se a inflação caísse, para gerar maior ganho real? Curiosamente, ao passo que a inflação se reduz e os encaminhamentos de reformas que aliviam o lado fiscal avançam, temos observado uma diminuição na curva de juros em relação aos padrões atuais. Em termos bastante diretos: se forem mesmo os rentistas os dominadores do panorama dos juros, são estes os seres mais burros do mercado financeiro, pois estão liquidando seus próprios ganhos.

Como os fatos diferem da conspiração, temos que aqueles que apontam os tais rentistas (e não os governos lenientes com inflação ou as estruturas públicas inchadas e cada vez mais caras) como sendo os maiores problemas da economia na verdade se esquecem de analisar a realidade que leva a mudanças indesejáveis por eles mesmos na política monetária. É quase como identificar uma febre e afirmar que o termômetro é o culpado, confundindo por qualquer que seja o motivo a consequência com a causa e, no fim das contas, não permitindo que uma solução adequada possa ser tomada.

Caio Augusto – Editor do Terraço Econômico

Notas [1] https://terracoeconomico.com.br/nao-existem-economistas-bonzinhos-ou-malvados-diferenca-esta-no-metodo [2] http://www.tesouro.gov.br/-/balanco-e-estatisticas [3] https://oglobo.globo.com/economia/mesmo-com-corte-na-selic-brasil-lidera-ranking-de-juros-reais-20762112 [4] https://www.bcb.gov.br/htms/novaPaginaSPB/PapelDoBancoCentral.asp [5] https://terracoeconomico.com.br/a-regra-de-taylor-e-clara [6] https://www.nexojornal.com.br/grafico/2016/12/19/O-que-%C3%A9-e-como-%C3%A9-composta-a-d%C3%ADvida-p%C3%BAblica-no-Brasil

Caio Augusto

Formado em Economia Empresarial e Controladoria pela Universidade de São Paulo (FEA-RP), atualmente cursando o MBA de Gestão Empresarial na FGV. Gosta de discutir economia , política e finanças pessoais de maneira descontraída, simples sem ser simplista. Trabalha como diretor financeiro de negócios familiares no interior de São Paulo e arquiva suas publicações no WordPress Questão de Incentivos. É bastante interessado nos campos de políticas públicas e incentivos econômicos.
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