Guerra cultural nos trópicos?

Em 1959, na Inglaterra, um físico da Universidade de Cambridge deu uma palestra intitulada The Two Cultures and The Scientific Revolution [As duas culturas e a revolução científica]. Nela, C.P. Snow defendia que a quebra do diálogo entre as duas grandes culturas científicas – as ciências naturais e as ciências humanas – era o maior obstáculo à solução dos grandes dilemas globais e, além disso, a principal causa de declínio da qualidade da educação naquele tempo. Snow criticava o fato de o sistema de ensino britânico privilegiar as humanidades – em especial, os estudos clássicos – em detrimento do aprendizado da ciência; para ele, o fato de a maioria dos administradores públicos ser razoavelmente letrado e, não obstante, ignorar conceitos científicos básicos, era um grande empecilho à implementação de políticas públicas de qualidade.

Houve diversas respostas à provocação de Snow, desde a reação virulenta do crítico literário F.R. Leavis alguns anos depois, passando pela proposta alternativa da The Third Culture [A terceira cultura] – a saber, a da comunicação científica para o grande público – numa obra coletiva organizada, em 1995, por John Brockman e continuada pela fundação Edge[1], chegando até o século XXI, com a publicação de mais uma obra coletiva, em 2001, editada por Jay Labinger e Harry Collins: The One Culture [A cultura/A ‘uma’ cultura][2], com o objetivo de mostrar que há mais pontos convergentes que divergências entre a postura daqueles que fazem ciências naturais e daqueles que fazem ciências humanas. Esses foram os episódios principais que pontuaram o fenômeno da war of cultures [guerra das culturas] na comunidade científica anglófona.

Marcos Napolitano, professor de história da USP, parece retomar essa conversa no artigo que escreveu semana passada para a revista Brasileiros[3], olhando para terras tupiniquins. Numa posição diametralmente oposta à de Snow, Napolitano sustenta que é a ausência das humanidades – não das ciências naturais – que mais tem prejudicado o Brasil:

Se quisermos um país com capacidade de formulação de políticas públicas eficazes, consciente dos seus interesses econômicos e posição geopolítica em um mundo complexo, de um aluno e um trabalhador que possam ser algo mais do que repetidores de tarefas mecânicas, precisamos das ciências humanas na pesquisa e na educação. Independente do debate esquerda / direita, que se bem colocado pode até ser muito produtivo (o que não é o caso do Brasil atual, infelizmente), as ciências humanas têm um papel a cumprir na sociedade.

Napolitano parte da identificação de um ataque generalizado às humanidades, subdividido em: 1) um ataque da “extrema direita”, para quem as humanidades seriam um “antro marxista”; 2) as críticas da “direita liberal”, para quem as humanidades a) são inúteis e b) constituem um grande desperdício de recursos. Descartando corretamente a primeira objeção, o historiador parte para o exame das posteriores.

Ele admite a inutilidade de muitas pesquisas em humanidades, limitando-se a estendê-la também às ciências naturais – citando o exemplo cômico, porém irrelevante, do Prêmio IgNobel[4]e sustentando a promessa de uma utilidade oculta e futura mesmo nas pesquisas que aparentam não servir a absolutamente nada. Embora possua a força de “virar a mesa”, utilizando a crítica contra aqueles que a mobilizaram em primeiro lugar, o argumento é equivocado: implicitamente, Napolitano aceita o critério de utilidade como principal dimensão valorativa de pesquisas científicas. Trata-se de uma noção por demais estreita para a complexidade da ciência, como já mostrei aqui no Terraço Econômico[5]a categoria de relevância deveria ser utilizada em seu lugar (o conceito aparece no texto, mas o autor sequer o define).

Para além disso, o professor aponta – corretamente – que as ciências humanas consomem apenas por volta de 10% do orçamento das agências de fomento de pesquisa no Brasil. Em contrapartida, Napolitano sublinha como, apesar do pouco investimento, muitos dos cursos universitários brasileiros que recebem destaque e reconhecimento internacional são precisamente das humanidades. Ao fazê-lo, o historiador da USP repete um erro corriqueiro: mobiliza acriticamente resultados de rankings internacionais para legitimar o status quo de uma área – mais um equívoco já dissecado aqui no Terraço[6].

Há dois grandes méritos no texto de Napolitano: em primeiro lugar, a ênfase no papel que as humanidades podem (e devem) desempenhar no debate público, especialmente na formulação de políticas públicas; em segundo lugar, o reconhecimento de que essa influência só faz sentido quando compartilhada harmoniosamente com as ciências naturais – ou seja, não é possível pensar a sociedade apenas a partir da perspectiva das humanidades, que não possuem, ao contrário do que se diz, o monopólio da crítica.

Em ambos os casos, entretanto, o professor pecou por excesso de timidez, pois não permite que os raciocínios se desenvolvam plenamente. Ao dizer “eu não quero que historiadores e poetas pensem pelos engenheiros, mas eu gostaria de engenheiros que também pensassem como historiadores e poetas”, o historiador deixa subentendido que cabe ao “lado de lá” realizar um esforço de abertura para as humanidades. Ora, por que não dizer o mesmo do “lado de cá”? Por que não dizer, como dissera Snow no final dos anos 1950, que ao historiador também é necessário se abrir à física e à química, que um crítico literário que ignora matemática e estatística tem grandes chances de falar besteira, a depender do tipo de análise que tenciona empreender? Quanto equívoco já não se cometeu, na história do pensamento ocidental, por excesso de ênfase no espírito em detrimento da matéria?

Por fim, o mais grave: Napolitano articula a guerra cultural em torno da oposição direita-esquerda. É a direita – autoritária ou liberal – que se mostra incapaz de valorizar o conhecimento produzido nas humanidade se sua importância para a organização da sociedade, bem como o peso institucional que as universidades (públicas e privadas) possuem nesse processo. Ora, não foi bem isso que se observou nos três mandatos (e meio) da esquerda progressista à frente do Brasil: a fatia do orçamento da Capes e do CNPq destinada às humanidades não variou significativamente nas últimas duas décadas e o desastroso programa de internacionalização que atendia pelo nome de Ciência Sem Fronteiras excluiu as humanidades[7] – para ficarmos em dois exemplos.

Napolitano tem razão em insistir na necessidade da presença das humanidades no debate público, devido ao enriquecimento que uma multiplicidade de perspectivas traz na formulação de políticas e no alargamento da racionalidade[8] governamental. Ele também tem razão ao apontar para a validade dessa afirmação para além do debate direita-esquerda (o qual o próprio autor não conseguiu ultrapassar): “Independente do debate esquerda / direita, que se bem colocado pode até ser muito produtivo (o que não é o caso do Brasil atual, infelizmente), as ciências humanas têm um papel a cumprir na sociedade”.

No entanto, precisamos reconhecer insuficiências e a necessidade de autocrítica em ambos os lados das duas oposições: humanas-naturais e direita-esquerda. Caso contrário, estaremos condenados a uma guerra sem fim (nos dois sentidos de fim).

Notas

[1] https://www.edge.org/ [2] Contribuiu para esse livro o físico e matemático estadunidense Alan Sokal, que protagonizou um escândalo no mundo acadêmico ao publicar um artigo-trote para provar o vazio de sentido que imperava em certas revistas de humanidades. Ver: https://pt.wikipedia.org/wiki/Caso_Sokal [3] http://brasileiros.com.br/2017/06/ciencias-humanas-e-guerra-cultural-no-brasil/ [4] https://pt.wikipedia.org/wiki/Pr%C3%AAmio_IgNobel [5] https://terracoeconomico.com.br/sentidos-de-relevancia-justificativas-para-o-financiamento-de-pesquisas-universitarias [6] https://terracoeconomico.com.br/quem-servem-os-rankings-universitarios [7] Sobre essa política fracassada, escrevi aqui no Terraço: https://terracoeconomico.com.br/fronteiras-sem-cienci [8] https://terracoeconomico.com.br/nocao-de-eficiencia-e-os-limites-da-racionalidade-economica

Rafael Barros de Oliveira

Formado em Direito pela USP, interessou-se pela teoria do direito produzida na Escócia antes de cair na filosofia da linguagem. Tomou o caminho mais longo, cursando a graduação em Filosofia na mesma USP, onde percebeu a tempo que do mato wittgensteiniano não sairá mais pato-lebre algum. Social-democrata por exclusão, acredita que a hermenêutica é o caminho para a emancipação. Foi pesquisador na Direito GV, na École Normale Supérieure de Paris e na Goethe Universität Frankfurt. É mestrando em Filosofia pela USP e agora tenta produzir suas próprias cervejas.
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