Constitucionalismo: as contradições do Brasil liberal e do Brasil social

Através desta reflexão, pretendo apresentar os conceitos de constitucionalismo, bem como alguns de seus fundamentos centrais, construindo um alicerce para o entendimento do debate constitucional-fiscal travado por diferentes economistas brasileiros nos tempos recentes. No âmbito do constitucionalismo brasileiro, um breve histórico das constituições é traçado, observando suas particularidades frente às dinâmicas que definiram e definem o constitucionalismo geral.

Ainda que o constitucionalismo geral tenha antecedentes históricos, ao ser objeto, por exemplo, da filosofia aristotélica, do direito romano e da Igreja Católica durante Idade Média, esta reflexão está voltada ao constitucionalismo moderno e o seu desenvolvimento.

Leite [1] identifica três acepções diferentes atribuídas ao termo constitucionalismo. A primeira, indicada por Zagrebelsky, refere-se ao movimento político-social que visa limitar o poder arbitrário. Lowenstein, por sua vez, atenta-se à existência da imposição dada por cartas constitucionais escritas, embora a existência de uma constituição não se identifica, necessariamente, com o constitucionalismo. Canotilho aponta ainda o caráter ideológico inerente ao termo, neste caso de caráter liberal, no tocante do governo das leis e não dos homens.

O constitucionalismo moderno, mais especificamente, o constitucionalismo liberal cujo ícone de maior notoriedade é a Carta Magna, de 19 de junho de 1215, diz respeito ao pacto entre o rei João e os barões na Inglaterra. Esse pacto, que caracteriza a natureza do denominado constitucionalismo liberal, é descrito por Baracho [2] como “celebrado entre governados, que convêm em obedecer, e os governantes, que se comprometem a assegurar a ordem e respeitar as condições postas ao seu direito de mandar […]”. Portanto, os elementos originários do constitucionalismo liberal são a delimitação dos poderes dos governantes e o respeito às leis e às liberdades dos governados.

O constitucionalismo se estabelece em um novo estágio de maturação com a Constituição Federal dos Estados Unidos de 1787, solidificando tendências provenientes das constituições flexíveis e estabelecendo um precedente para as constituições rígidas que viriam a surgir. Nessa fase pode-se elencar uma série de características essenciais [3]:

  • A constituição é escrita;
  • A constituição é de difícil modificação;
  • Uma parte da constituição é dedicada aos direitos individuais;
  • Uma parte da constituição é dedicada à organização do poder;

Uma nova fase da evolução constitucionalista enquanto processo histórico, considerado como contemporâneo e social, herda influências da discussão revolucionária francesa sobre os direitos humanos, dignidade humana e do pensamento socialista. Frente ao período pós-Primeira Guerra Mundial, o constitucionalismo, além de limitar o poder dos governantes, passa também a incorporar um aspecto planificador. Constitucionalizam-se as realidades econômico-sociais, assim como expresso por Baracho, [4] ao expressar que “O constitucionalismo social contemporâneo ficou enriquecido com os princípios informadores da ordem econômica e social procurando os processos democráticos ajustar-se com as garantias individuais.”.

O denominado constitucionalismo social, cujos ícones de maior notoriedade são a Constituição Mexicana, de 1917, e a constituição de Weimar, que fundou a república alemã, simboliza então o início do reconhecimento dos direitos econômicos e sociais (p. ex. trabalho, seguro social, empresas públicas etc.) e a aproximação do cidadão à esfera política da vida social em termos contemporâneos.

As contradições do Brasil liberal e do Brasil social

Considerando o constitucionalismo liberal e o constitucionalismo social, será apresentado um breve histórico das constituições brasileiras frente à perspectiva de ambas as denominações.

A Constituição imperial de 1824 é tida como antiga e moderna [5] em razão da contradição que carregava em seu cerne. Ao mesmo tempo, constitucionalizou o Poder Moderador e conferiu poderes praticamente ilimitados ao imperador, assim, estabeleceu direitos fundamentais (p. ex. direitos civis, políticos e de liberdade de expressão e de religião) mesmo estando geograficamente distante dos ideais liberais europeus.

A Constituição de 1891, que instaurou a república nomeada “Estados Unidos do Brasil”, teve uma série de mecanismos que visavam compensar o déficit liberal criado pela constituição do período imperial (p. ex. definição do crime de responsabilidade por parte da Presidência, em resposta direta ao Poder Moderador), porém, sem surtirem efeito, tendo vista as práticas do “voto de cabresto” e da política dos governadores.

A Constituição de 1934 foi a primeira tentativa de aproximar o constitucionalismo brasileiro do constitucionalismo social que estava surgindo na Europa. Através do golpe de 1930, Getúlio Vargas volta-se aos aspectos sociais também como uma ferramenta política para combater o antecedente de ações políticas pautadas no apoio popular. É neste período que o Supremo Tribunal Federal passa a ser, de fato, o guardião da constituição nacional.

A Constituição de 1937 surge em um contexto interno de radicalismos, com o surgimento dos movimentos políticos de cunho fascista, com Plínio Salgado, e de cunho comunista, comandado por Luis Carlos Prestes. Considerando esses fatores, Getúlio outorgou a Constituição de 1937 que conferia poderes de caráter autoritário à Presidência da República, afetando a tripartição de poderes e a autonomia do judiciário e novamente indo na contramão do constitucionalismo liberal.

A Constituição de 1946, por sua vez, é tida como uma síntese do constitucionalismo liberal e do constitucionalismo social, conforme afirma Celso Bastos, citado por Vainer [6]:

“A Constituição de 1946 se insere entre as melhores, senão a melhor, de todas que tivemos. Tecnicamente é muito correta e do ponto de vista ideológico traçava nitidamente uma linha de pensamento libertária no campo político sem descurar da abertura para o campo social que foi recuperada da Constituição de 1934.”

Em um contexto de retorno à democracia, essa constituição é vista com extremo prestígio na área do direito constitucional, porém acabou sucumbindo em razão de um conturbado cenário político que viria a enfrentar.

A Constituição de 1967 é apresentada pelo governo militar como necessária para a preservação da segurança nacional, mais uma vez em tendência contrária ao constitucionalismo liberal. Celso Bastos ilustra o contexto histórico da constituição no período, cita Vainer [7]:

“Vê-se que se tratava de um período curioso da história do Brasil.

Ao mesmo tempo que se desprezava o direito constitucional – porque tudo no fundo brotava de atos cujo fundamento último era o exercício sem limites do poder pelos militares – não se descurava, contudo, de procurar uma aparência de legitimidade pela invocação de dispositivos legais que estariam a embasar estas emanações de força.

Para uns, como visto, esta emenda é uma nova Constituição, para outros não passa de uma mera emenda.

Preferimos ficar com estes últimos, embora não se desconheça que a relevância da questão é muito pequena.

De qualquer sorte, como foi um período onde prevaleceram os rótulos e as formas, com total descaso pela substância, é preferível mesmo manter o ato com a natureza com que ele veio a lume.”

Após longo processo de elaboração, a Constituição de 1988 é promulgada. A chamada “constituição cidadã” consagrou os direitos individuais e sociais, dando atenção aos princípios da dignidade humana e ao direito dos trabalhadores, bem como se propondo a assegurar a igualdade material na sociedade brasileira.

Assim como as constituições que a precederam, a Constituição de 1988 não está livre de críticas, seu grande problema é como concretizá-la [8]. Esse problema gera, por consequência, uma intensificação do grau de descrédito e desconfiança no próprio Estado, nos âmbitos do poder político e das políticas públicas.

O debate constitucional entre economistas

Ao tratar do debate constitucional no âmbito das políticas públicas, podemos destacar diferentes posições tomadas por economistas.

Primeiramente, em relação à Constituição Federal de 1988, o economista Roberto Campos adotou uma posição veementemente contrária a ela, afirmando que embora seja satisfatoriamente libertária no político, era demasiadamente restritiva no âmbito econômico e utópica no social [9]. Ambos os pontos estão no cerne do debate econômico atual, desencadeado pela crise político-econômica que levou ao impeachment de Dilma Rousseff e envolve uma série de projetos de emenda à constituição e reformas legislativas (p. ex. reforma trabalhista).

Marcos Lisboa, assim como Roberto Campos, celebra a regulamentação do Estado de direito, porém, indica uma excessiva regulamentação da vida econômica que resulta em um crescente agravamento do quadro fiscal do país [10]

Laura Carvalho, por sua vez, chama atenção para a concepção social do constitucionalismo, que é vista como inerente à vida social do brasileiro, devendo pautar a discussão na preservação deste, enquanto se encara os problemas de ordem financeira do Estado brasileiro [11].

Considerações Finais

Ao longo deste trabalho foi abordado o contexto histórico moderno e contemporâneo do constitucionalismo, observando sua evolução no constitucionalismo liberal e no constitucionalismo social. O histórico das constituições brasileiras exposto tem por proposta observar as contradições nacionais e a não linearidade nos âmbitos liberal e social.

As análises da Constituição de 1988 oferecem uma posição de possível maturação relativa do constitucionalismo liberal no Brasil. Nos aspectos sociais e econômicos, tal posição já não aparenta estar tão definida, conforme se pode observar nos diagnósticos apresentados por alguns economistas brasileiros, colocando o constitucionalismo social como, talvez, uma das grandes questões a serem enfrentadas no Brasil contemporâneo.

Por fim, os conceitos de constitucionalismo liberal e constitucionalismo social oferecem evidências para uma possível interpretação do atual estágio de maturação do capitalismo brasileiro, dos novos rumos da política fiscal no Brasil e suas relações com o constitucionalismo.

Texto dedicado a Mateus Paes Alves

Fonte
[1] Constitucionalismo e sua história[2] [3] [4] Teoria geral do constitucionalismo[5] [6] [7] Breve histórico acerca das constituições do Brasil e do controle de constitucionalidade brasileiro [8] A problemática da constituição dirigente: algumas considerações sobre o caso brasileiro[9] Críticas de Roberto Campos à Constituição ainda ecoam[10] Para economista, Constituição engessa contas públicas e impede flexibilizar orçamento[11] A plutocracia não cabe no orçamento

Paulo Silveira

Graduando em Análise e Desenvolvimento de Sistemas pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo (IFSP) e ex-graduando em Economia pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Trabalha com gestão de produtos digitais em startups brasileiras. Produz conteúdo sobre economia e tecnologia. Foi um dos vencedores do concurso nacional de resenhas organizado pelo Conselho Federal de Economia em 2017, escrevendo sobre a obra 'Princípios de Economia Política e Tributação' de David Ricardo.
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